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Quando
meu pai faleceu, eu vinha de um tombo grande, ainda lambendo feridas.
A esse tombo se juntou essa bomba nova: era eu sem pai, pela primeira
vez no planeta.
Eu
estava triste, mas acima de tudo confusa e muito assustada. Como ia
ser esse mundo sem pai?
Sempre
preferí me entender sozinha, ou talvez tenha sido obrigada a isso,
não sei. Mas, seja como for, resolvi viajar e ficar uns dias na
praia, todos nós: eu e eu e a confusão e o medo.
Fomos
para a praia da minha infância, a praia que tinha devolvido, a mim e
a ele, uma relação que - se a vida não fosse tão apressada em
acabar - talvez tivesse encontrado um espaço particular que a gente
nunca tinha podido abrir.
Lá
fui eu, sem avisar ninguém, só minha mãe, o eterno (pensava então)
farol prá onde voltar.
Praia
no inverno é melhor, porque eu nem pensava mesmo em sair por aí sem
roupa, razões que se explicarão adiante.
Eram
dias de céu muito azul e sol espalhado, quase calor, mas uma brisa
feita de mar e um pé no frio. Eu ficava muito tempo olhando a areia,
o mar e o quase nada de gente por ali. Pensava sem pensar em coisa
nenhuma, o melhor jeito que eu sei de me deixar pensar, sem ficar
perturbando.
Eu
preferia o sossego de gente nenhuma, mas no hotel em que me hospedei
estavam uns poucos grupinhos e um casal, provavelmente em lua-de-mel.
Os
dois eram muito jovens e bonitos, porque a juventude nos deixa belos
mesmo quando não o somos, simplesmente porque é nisso que
acreditamos. Então, eram belos. E era gostoso vê-los, no pouco que
eu saía do meu não-pensar e via algo do mundo aqui fora.
Um
dia, sentei na praia em frente ao hotel, embaixo de um quiosque de
sapê. Era um dia mais quente e eu estava especialmente triste; as
saudades doíam tanto, mas tanto. Coisa mais cretina que é saudade.
Uma dor que fustiga e rói sem dó e não há o que melhore, só a
lerdeza do tempo, sistema mais infernal.
Então
sentei quietinha, na areia mesmo, e tentei chorar por trás dos
óculos escuros, em silêncio, prá não incomodar nem siri. Como o
tempo esquentou, eu tirei a camiseta, porque estava de maiô por
baixo e uma saia feita da canga.
No
meio da minha choração discreta, eu comecei a ouvir um risinho, mas
eu estava não-pensando, então nem registrei muito. Mas dali a pouco
entrou um cochicho chutando a porta do meu recolhimento e mais um
risinho. E mais cochicho. E risinho. Então, virei a cabeça em
direção a esses sons e vi o casal em lua-de-mel. E não liguei,
porque conheço minha neurose, falei "shhh" prá mim mesma
e voltei a olhar pra areia. Mas começou tudo de novo e aí não dava
mais pra fingir que não era nada. Era comigo, era pra mim. era de
mim. Riam e cochichavam, porque uma gordinha estava sozinha, de maiô,
escondida no inverno e nem jovem mais era ela, algo que lhe
devolvesse algum crédito. Ou era o que eles pensavam, porque quando
eu olhei de novo, ela riu aberta e sarcasticamente mesmo, embora ele
ficasse um pouco constrangido com o que viu no meu olhar.
Então,
quando eu já estava no embate entre chorar até derreter ou encher
ela de porrada, porque quando eu fico com medo e magoada eu
instantaneamente fico muito, muito zangada, vi um homem levando uma
bicicleta pela mão, lá meio longe.
Ele
veio vindo e foi chegando perto e eu pude ver uma maritaca
empoleirada no guidão. Aí ele parou e apoiou a bicicleta e acenou
com a cabeça prá mim, de leve, como um cumprimento. Eu ia sorrir de
volta, quando vi a maritaca descendo da bicicleta e ir andando até a
beira da água, onde a marolinha faz aquela espuminha boa. E a
maritaca começou a tomar banho, splash prá lá e a onda vinha, ela
corria um bocadinho e corria de volta e splash prá cá. Quando ela
resolveu que já estava toda asseada, sei lá, ela veio voltando,
andando, e tchuc tchuc tchuc, foi subindo de novo até o guidão.
Inda se chacoalhou toda, feito um cachorro, que até respingou em
mim.
Eu
comecei a rir e perguntei pro moço:
-
Ela não voa, porquê? O senhor cortou a asa dela, foi? Não me diga
isso...
-
Nada, não senhora. A passarinha, eu trouxe ela do Ceará, no meu
colo. Quando eu estava pra pegar o ônibus aqui pro Sul, vi que ela
tinha caído de um ninho. Catei e procurei o ninho, a mãe, mas nada.
Não achei. Estava lá eu pensando no que fazer, quando me chamaram,
que o ônibus ia embora. Então, resolvi que era melhor ela vir
comigo, do que ficar ali pra virar comida de gavião. E viemos, dois
dias num ônibus, mais não sei quantos em outro. Eu fui dando água
e migalha de coisa e ela foi crescendo sempre comigo.
Olhei
a passarinha. Realmente as asas estavam em ordem, ela parecia feliz.
-
Mas então por que ela não voa?
-
Ah, dona, ela só não sabe que sabe voar.
E
abriu um sorrisão moreno e franco, me olhando nos olhos de um jeito
que me fez sorrir e entender, coisa pra nunca mais esquecer.
Olhei
pro lado e o casal tinha sumido.
[essa
estória foi postada primeiramente numa comunidade da qual eu fazia
parte: www.yubliss.com]
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