http://www.mochileiros.com/copenhagen-perguntas-e-respostas-t9652.html
Num
dia de outubro de 1989, nem bem entrei em casa e minha mãe me disse:
"Vou pro Nepal". Ao que respondi, sem ter a menor ideia do
que estava fazendo, "Também vou". Ela tinha conhecido um
agente que organizava viagens de aventura, uma ideia apenas
incipiente, na época. Gostou da ideia e resolveu. Detalhes sobre
como arranjar o dinheiro pra uma empreitada desse tamanho eram
irrelevâncias com as quais lidaríamos depois, mantendo nossa
tradição cigarra.
A
viagem era de um mês, incluindo duas semanas de trekking pelas
montanhas do Anapurna. A única pergunta que fiz ao agente foi: "Eu
sou gordinha e fumante. Como é esse trekking?".
Respondeu que era uma coisa leve, que qualquer um podia fazer. Ótimo,
pensei, na minha santa ingenuidade, como diria o Robin.
Resolvemos
os passaportes e vistos, comprei uma lanterna de bolso, um canivete
suíço e mais nada, pois o resto era simples e o pacote incluía o
aluguel de botas de trekking em Kat. Viajaríamos dia 28 de
dezembro, pela Scandinavian Air Lines, o que - mais um brinde! - nos
daria uma noite de hospedagem gratuita em Copenhagen, na ida. O
agente nos encontraria no Nepal, pois iria antes para preparar tudo.
Decolamos
à noite e a previsão era de 13 horas de viagem, até Copenhagen.
Naquele tempo ainda se fumava no avião e foi graças a isso e a uma
considerável quantidade de drinques que a mim foi possível encarar
um voo tão longo. Engatei num conversê animadíssimo com um
engenheiro norueguês inteligente e descolado, que falava inglês tão
mal quanto eu. Foi a primeira vez que ouvi, de fonte segura, que uma
vida com grana de sobra, serviços públicos ótimos para todos e
nenhuma dificuldade para resolver o cotidiano, de nada adianta para
impedir a insatisfação das pessoas.
Contou-me
que na Noruega, como na Escandinávia de maneira geral, bebia-se uma
barbaridade e que o suicídio entre adultos na faixa dos 35 aos 45,
era comum. Saindo de um país como o nosso, onde a classe média nem
certeza de que vai poder fazer o próximo supermercado tinha (ou
tem...), achei aquilo intrigante e muito interessante, afinal aqui
era mais fácil encontrar quem se suicidasse justamente por não
ter essas seguranças e confortos. Naquela época eu ainda estava só
recolhendo dados sobre a vida e as pessoas, sem muita consciência
dos porquês. O tarô já fazia parte da minha vida, mas eu era
eminentemente uma mercenária e hedonista, a fim de apenas curtir a
vida. Achei, portanto, que a grama desse vizinho era
inquestionavelmente mais verde e que simplesmente Deus dá pão pra
quem não tem dente.
http://www.urbanpilgrims.org/copenhagen_christiania/info
Em
certo momento, resolvemos dormir, porque até para drinks
grátis há um limite, embora o meu fosse muito elástico, naqueles
idos tempos. Dormi por horas, apenas para acordar e perceber que
ainda faltava muito para aterrissarmos. Não se tem nenhuma noção
mais real da imensidão do planeta, até vivermos momentos como esse.
Finalmente,
o sol começou a nascer e nos ocupamos em ficar maravilhados pela
facilidade e eficiência com que as embalagens dinamarquesas abriam,
coisa rara no Brasil, embora nem todos os sabores nelas contidas
fossem lá muito melhores. Eram melhores, mas não tanto
quanto esperaríamos. Comida de avião é comida de avião em
qualquer língua, exceto provavelmente na primeira classe, acho.
Chegamos
ao nosso destino e fomos encaminhados para um hotel adorável, onde
percebi imediatamente que escandinavo tem o design no sangue.
Além disso, para uma produtora de casting, aquilo era o
paraíso: garçonetes com a cara da Gisele Bündchen e da Michelle
Pfeiffer, concièrges parecendo o Kevin Costner, estudantes e
trabalhadores pelas ruas parecendo grupos de Brad Pitts, Matt Damons
e Russel Crowes. Bem, talvez não tanto assim, mas pra falar a
verdade, era quase isso mesmo.
http://www.featureshoot.com/2009/11/qa-brad-dececco-new-york/
Com
o radar patético que possuo, consegui me perder e me vi, de repente,
atravessando ruas que contrariavam completamente o que descrevi até
agora. Lotadas de inferninhos em porões de casas decadentes, com
orientais mal encarados zanzando e garotas febris encostadas pelas
cercas, percebi que todo lado luminar tem seu opositor natural. Caí
fora segundos antes de que um chinês meio sujo e suado me abordasse,
irritado com os clicks da minha câmera.
Perambulando
e mostrando o cartão do hotel, consegui voltar ao meu quarto, não
sem antes perceber que o bas-fond, a profissão mais antiga do
mundo e o ilícito fazem-se fatalmente presentes onde houver mais de
meia dúzia de pessoas. Aprendi que, mesmo tendo quase tudo certinho
e confortável, o ser humano parece ser naturalmente ávido pelo dark
side. Mas penso que
provavelmente é apenas porque é um entediado per se.
......................................................................................................................
http://thailandtimes.asia/thailand-news/bomb-threat-on-thai-plane-a-nuisance/
Acordamos
muito cedo e fomos para o aeroporto, pegar nosso voo de dez horas com
destino a Bangkok, na Tailândia. Nossa passagem tinham sido mais
barata, mas era como viajar num desses trens que vão fazendo
baldeação à rodo. Nosso itinerário era: Sp - Copenhagen - Bangkok
- Calcutá - Kathmandu. Em Bangkok teríamos 3 horas de espera, em
Cacutá sete, mas pra quem está em ritmo de aventura tudo soa bem e
parece ótimo, coisa que ia se provar um engano, mas eu ainda não
sabia.
Chegamos
em Bangkok à tarde, num calor de fritar ovo em capota de fusca e a
primeira coisa que notei foi que estava ali um povo que eu não ia
curtir. Ao contrário da elegância natural dos escandinavos, o staff
e o aeroporto de Bangkok lembravam demais o filme "Expresso da
Meia-noite": os atendentes eram grosseiros e mal humorados e
havia cartazes por todo lado, avisando para não deixar a bagagem
largada, porque os traficantes jogavam as drogas nelas, trafico lá
dava pena de morte e não tinha acordo com embaixada nem consulado
nenhum. Fiquei lendo aquele "death penalty" e
pensando que aquilo era um péssimo cartão de visitas.
Com
os olhos, procurei minha mãe e o que vi foi a linda fotografando pra
cá e pra lá e as malas abandonadas num canto lá longe. Pra alguém
pouco descolada feito eu, aquilo pedia uma caixa de Frontal, que eu
não tinha. O resultado, portanto, foi uma gordinha paranoica,
freneticamente revistando a bagagem da progenitora no banheiro
feminino. A faxineira me olhava e ria, dizendo coisas numa língua
que achei detestável, um mix
de fanho e estridente e, óbvio, eu não estava em condições de
discernir se aquilo era um riso de doce compreensão, de estupidez
mental ou de escárnio. Minha mãe era uma pessoa, como se diz hoje,
"de boa", então ela achava tudo absurdo e me dizia que
aquilo era bobagem, ao que eu respondia que era uma bobagem, talvez,
mas que diante da possibilidade contrária e de suas consequências,
eu preferia passar por doida.
http://bangkokscoop.com/2011/09/29/suvarnabhumi-airport-welcomed-47-million-passengers-the-previous-fiscal-year/
No
portão de embarque, o tratamento dispensado era, como se diz em
inglês, something: uma minúscula e horrorosa senhorita
literalmente batia com uma vara nas nossas pernas, assim ajeitando a
retidão da fila, enquanto entoava bravezas ininteligíveis, de novo
naquela língua desagradável aos meus ouvidos latinos. Se eu não
estivesse sob o efeito hipnótico daquele "death penalty",
teria acertado um estupendo tapa nas orelhas daquela rã pirada, que
a teria deixado surda até a volta de Buda, mas
do jeito que a coisa ia, me encolhi submissa e rastejante como todo o
resto dos atônitos passageiros.
O
excelso cavalheiro militar que finalmente nos atendeu era da mesma
linha elegante da graciosa batráquia lá fora. Pediu-me o passaporte
com a educação de um porco selvagem e levou uns dois minutos
inteiros silenciosamente checando meu rosto e a fotografia do
documento, como coisa que eu tivesse pintado o cabelo de loiro e
feito plástica no nariz. Murmurava algo com os botões de sua farda
e apontou minha bagagem de mão, que eu abri prontamente, louca pra
ser liberada daquele pesadelo. Viu meu pacote de cigarros e,
lentamente, tirou um maço, abriu-o, acendeu um cigarro e, rindo como
a faxineira do banheiro, colocou o maço no seu próprio bolso, me
dizendo sabe Deus o que e me medindo de alto a baixo.
http://2012rising.com/article/2012-the-kali-yuga
Fervi.
Hoje estou um pouco menos burra, precisa mais do que um palito pra
acionar minha Kali Yuga particular, mas naquela época eu fervia
fácil, que dirá sendo tratada daquele jeito. Diante da impotência,
minha válvula de escape foi olhar para aquele pilantra, sorrir
simpaticamente e desabar a dizer, com voz suave e gentil,
barbaridades em claro português. "Claro, seu fdp; pode pegar,
seu m... Porque não pega mais um pra enfiar...", tudo com cara
de anfitriã mineira e sorriso made in Brazil.
Minha mãe, sendo atendida no mesmo estilo por outro verme similar
mais adiante, me olhou assustada e eu continuei sorrindo e explicando
pra ela que aquela corja de safados não entendia uma palavra de
português, portanto que ela sorrisse também enquanto eu desopilava
o fígado, xingando até a quarta geração daquela turba ignara.
Apesar dela detestar a linguagem chula que me vinha à mente em
momentos assim, a verdade é que a cena era engraçada
e ela desatou a rir. Não, não foi nada fino, admito, mas uma vida
com alguns estágios soturnos me ensinou, dentre outras coisas, a
língua da escória, que, de resto e infelizmente, me foi útil em
várias ocasiões.
http://biztravelguru.com/blogs/business-travel-news/archive/2010/06/28/thai-airways-welcomes-two-new-aircraft-into-its-fleet.aspx
Finalmente
livres daquele hospício, fomos encaminhados ao avião. Sentimo-nos
como Alice, porque, de
repente, tudo virou do avesso: o avião era decorado em pink
e violeta, por fora e por
dentro, para começar. As aeromoças eram lindas, usavam uma roupa
pink e dourada e eram
um exemplo de gentileza e boa educação. O piloto nos recebeu,
educadíssimo e solícito e, para deixar tudo ainda mais pinéu,
serviram champagne (de excelente qualidade) em comemoração ao ano
novo que seria no dia seguinte ou estava sendo naquele dia (eu já
não me entendia mais com os fusos). Os passageiros sentavam-se em
silêncio, totalmente perdidos entre os maus tratos que haviam
experimentado há poucos minutos e este repentino tsunami de
gentilezas. O toque Salvador Dalí ficou por conta de uma impecável
orquídea lilás que distribuíram a todos antes do avião decolar e
que prendemos às roupas, agradecendo com sorrisos ainda inseguros.
Parecíamos um bando fugido do Pinel, com cara de "não
entendi", enfeitados paca e meio bêbados.
http://shlomit-ofir-details.blogspot.com/2010/09/orchids-and-airplanes.html
Decolamos
rumo à Calcutá e rapidamente todos puseram-se a dizer que não
tinha sido nada, que eram apenas um ou dois funcionários mal
humorados e que, oras, qualquer um pode ter um dia ruim, afinal,
"todo mundo adora a Tailândia". Percebi, pela primeira
vez, o quanto a maioria das pessoas prefere a negação e a
subserviência, do que ter que lidar com a realidade. Pensei que
talvez fosse aquele efeito de falso amor ao próximo, comum aos
primeiros estágios alegres do álcool, mas na verdade essa seria a
primeira de várias reações grupais intrigantes que eu ainda iria
observar. De qualquer forma, eu tinha três horas de voo pela frente
para arquivar a péssima recepção em Bangkok e resgatar o
entusiasmo. E não foi difícil. Afinal, pensei, para o bem ou para o
mal, eu estava vendo o mundo, como diria Agatha Christie.
http://metalifestream.com/wordpress/?p=991
................................................................................................................
http://mobile.businessinsider.com/worst-first-class-airlines-2010-12/-3-air-india-8
A
chegada em Calcutá incluiu um calor grau 8 e o cansaço evidente,
mas ali o mundo começou a ficar realmente diferente. Se no aeroporto
de Bangkok nos sentíamos como em qualquer metrópole,
com seus luxos e tecnologias, acho que foi em Calcutá que começamos
a entender para onde estávamos indo, afinal.
Fomos
abordados por dois homens com longas túnicas que, sorridentes e
gentis, pediam nossos passaportes. O inglês era quase
incompreensível e a perspectiva de nos separarmos dos passaportes
assim sem dizer água-vai era um tanto assustador, mas o fizemos,
pois parecia não haver outra opção. A questão era, se entendi
bem, que estávamos em trânsito e eles tinham que ter certeza de que
não íamos fugir Índia afora. Ou então, o que acho mais provável,
era porque a burocracia na Índia é algo de deixar nossos cartórios
no chinelo e os documentos eram necessários para uma longa série de
carimbos e guichês. Deram-nos as bagagens, nos encaminharam a um
amplo e vazio salão e sumiram.
http://lilianlima-trespontos.blogspot.com/2009/07/arrastando-o-sari-pelo-mercado.html
Nossa
espera seria de sete (!!) horas e o salão não tinha água ou comida
à vista, apenas sofás circulares anos 50 de plástico verde-água,
mais umas quantas mesas empilhadas nos fundos e alguns balcões de
madeira. Procuramos alguém que nos indicasse os banheiros e uma moça
gentil veio nos escoltar. Essa foi a primeira cena que registrei
sobre os contrastes que iriam repetir-se e amplificar-se ao longo da
viagem: até hoje vejo a moça num belo sari marrom e dourado, a tika
dourada sobre o terceiro olho e um sorriso simplesmente lindo e
pacífico. E logo atrás dela, vejo podres escarradeiras de latão
nos cantos do corredor e as negras nuvens de moscas por cima de cada
uma. Os choques desse tipo tem a particularidade de te deixar
suspenso, porque é contemplar o belo e o horrível, o afetuoso e a
negligência, o divino e o sombrio, a um só tempo, como uma mensagem
subliminar e fundamental, só compreensível por algo que está acima
ou além da razão.
Seguimos
a estranha princesa até chegarmos a uma porta que ela nos indicou
com a mão. Sorrindo, sumiu também. Entramos numa sala azulejada de
branco e pintada de verde-hospital, com uma pia meio suja e dois
assentos de louça razoavelmente limpos e encrustados no chão. A
única forma de usá-los era agachando-se e eu só pensei que podiam
ter, pelo menos, um corrimão para a gente se segurar, mas pelo visto
o hábito faz o equilíbrio, porque não havia nada disso. Saímos de
lá pensando que o primeiro banheiro oriental a gente nunca esquece.
Até hoje não sei se existiam banheiros ocidentais aos quais não
tivemos acesso, sabe lá porque, ou se eram esses os únicos
disponíveis.
http://greenteabottle.wordpress.com/2011/05/14/the-asian-buffet-22/
De
volta ao salão, vimos uma moça abrir a parte traseira de um dos
balcões e transformá-lo, como num jogo de Lego, num balcão cheio
de chocolates, refrigerantes, água, salgadinhos e cigarros. Muito
séria, nos fez um sinal e corremos a comprar água mineral às
dúzias, biscoitos e chocolates à rodo. Depois dessa lambança
geral, ela guardou tudo, fechou o balcão com chave e ... adivinhe!
Sumiu também.
Não
sei como fiz para dormir por quase 3 horas com o calor me grudando ao
plástico do sofá e a coluna em forma de foice. Acordei irritada,
sedenta e, claro, desagradável. Resmunguei, reclamei e zanzei pelo
salão feito um puma enjaulado. Na verdade, todos sentiam exatamente
a mesma coisa que eu, mas eram do tipo que prefere não expressar o
desgosto, a começar pela minha mãe, que não carregava uma úlcera
duodenal à toa. Eu, porém, prefiro externar o que sinto, pois isso
imediatamente me libera do sentimento. Caso contrário, fico
literalmente doente. Naturalmente, vieram me dizer que eu estava
estragando a harmonia do grupo. Bem, pensei, alguém tem que fazer
isso, especialmente quando é uma harmonia hipotética, porque até
aquele momento a verdade é que mal falávamos uns com os outros. A
única harmonia que havia era a da não interação. Com esse
episódio, porém, todos passaram a me atacar ou defender, pois não
há nada melhor para acabar com a timidez de um grupo, do que
apresentar um Judas para julgamento. E, na verdade, depois disso
ficamos na boa e mais próximos. Como sempre digo, a ira tem lá suas
funções.
http://www.attinderdhillon.com/old-sikh-man/
De
repente, abriu-se uma porta lateral e, por ela, vimos um mar de gente
no salão contíguo. Apareceram os nossos passaportes e nos
encaminharam pela portinhola. O barulho era meio ensurdecedor, já
era noite e o elenco era interessantíssimo: senhoras de sari e
crianças descalças e alegres, solenes e taciturnos sikhs e seus
turbantes, senhores centenários de longas barbas brancas e quase
todos com seus pacotes amarrados com barbante à guisa de bagagem de
mão. Nosso grupo estava totalmente apático pelo desconforto e
exaustão, mas eu estava adorando observar a humanidade e suas
peculiaridades.
http://india-consulate.org/gallery/indian-people-Szzfn.html
Finalmente,
chamaram nosso voo para Kathmandu e uma coisa muito boa de aeroporto
meio chinfrim, ao menos naquela época, é que a gente ainda andava
pela pista até o avião, olhando as outras aeronaves manobrando logo
ali. Daí subia a escada, com o vento batendo no cabelo e no ticket
de embarque e então entrava no
avião. Essa lombriga com design meio Securit de hoje em dia, que já
vomita você dentro da aeronave, tira muito do lúdico de voar, eu
acho.
Decolamos
e a outra cena que ficou na minha cabeça é ver por cima e bem
rente, sob a luz de uma lua imensa, a majestade extasiante das
montanhas do Anapurna, enquanto uma aeromoça de sari cor de burro me
oferece um "milcoffee" fumegante. Queimei a boca naquele
café com leite pelando e nem liguei, olhando, maravilhada, minha
própria insignificância.
http://www.asaber.com.br/jordan-romero-e-o-jovem-a-escalar-o-everest/
.......................................................................................................................
http://www.travelersdigest.com/kathmandu_travel_guide.htm
Ao
aterrissar em Kathmandu estávamos tão cansados que só o que
importava era que finalmente íamos parar de quicar pelos ares feito
um zepelim furado. Já fora do terminal, eu esperava minha mãe
passar pelo esotérico ritual de giz e seus hieroglifos indecifráveis
do resgate da bagagem, quando me vi cercada por uns dez ou doze
garotos entre 6 e 12 anos, mais ou menos, tão próximos que
literalmente encostavam em mim. Vindo do Brasil, era o tipo da
situação alarmante, mas em poucos minutos deu pra perceber que a
intenção dos meninos era outra: sorriam e pegavam nas minhas roupas
e cabelo, esquadrinhando minha figura entusiasmados e curiosos, como
quem vê um dromedário num simba safári. Falavam todos ao mesmo
tempo e me tonteavam, prensando-me contra a parede. Lembrei que tinha
levado vários alfinetes com a bandeira do Brasil e comecei a
distribuição. Contentíssimos, os garotos abriram uma brecha e eu
pude respirar, não sem antes dar uma checada básica na carteira.
Mas era mesmo só uma inocente curiosidade que, aliás, veríamos por
todo o Nepal.
DURBAN
SQUARE:
http://www.mountainsoftravelphotos.com/Nepal%20-%20Kathmandu/Main.html
Chegamos
ao hotelzinho que ficava numa ruela de terra, largamos as bagagens no
chão, tomamos banho e fomos curtir o réveillon nepalês. Nosso guia
brasileiro nos levou a uma boite, meio inferninho, ou assim parecia
pela pouca luz e vermelha. Enchemos a cara do, penso, ilegal álcool
local, como cerveja de painço e rum de algo similar a painço. O som
era uma lambada que tinha feito furor aqui uns anos antes, tocada e
cantada a plenos pulmões e repetida à exaustão. O porre foi
inacreditável, especialmente porque a isso juntamos as garrafas
melhorzinhas de vinho e champagne que havíamos trazido de fora.
Passei os três dias seguintes parecendo um mix de Rê Bordosa e
Janis Joplin, batizando Kathmandu a intervalos regulares e pensando
seriamente em raspar a cabeça careca e encontrar alguma naja
disposta a me despachar desta para melhor.
http://kellcandido.deviantart.com/art/Re-Bordosa-177366676
A
primeira semana em Kat foi ocupada em ir atrás dos vistos para o
trekking, alugar as botas famosas e zanzar pela cidade. No terceiro
dia, sentei no hotel e chorei até me acabar, pensando em por que, oh
my God, por que eu havia gasto tanto dinheiro em ir para um lugar
daqueles (e também por que, oh my God, aquela ressaca não
passava??...)? Nos outros quartos o som era similar, ou então era um
silêncio sepulcral que, de qualquer maneira, parecia dizer o mesmo.
Nada anormal: a maioria de nós, ocidentais, sente um abalo sísmico
quando entra em contato com uma cultura e um lugar tão absolutamente
diversos do habitual. E, como ensina a Torre do tarô, abalos dessa
ordem não acontecem para te emporcalhar, mas, ao contrário,
funcionam para abrir nossos olhos, mente e coração. Acontecem
justamente porque em geral estamos aferrados a
uma
torre própria de ideias, dogmas e conceitos fechados e inflexíveis.
Alguns podem viver assim a vida toda; a outros, no entanto, a vida
parece chamar à frente. Talvez seja o caso de, realmente, prestar
mais atenção às letras miúdas do contrato, antes de embarcar para
a Terra.
http://blog.travelpod.com/travel-photo/col.caf/1/1289251366/butcher-nepali-style.jpg/tpod.html
http://www.emilkhalilov.com/?p=650
O
chororô nos liberou, como se zerasse o programa mental. Passei a ver
realmente Kathmandu e
a mim, nela; a ver realmente suas pessoas, casas, produtos, animais,
crenças e comportamentos. Ver e não julgar, uma
novidade total para quase todos nós. Ser capaz de perceber, peneirar
e aprender o que tem a ver conosco é uma experiência especial. O
desconforto material ainda era irritante e eu teria que estar morta
para não percebê-lo: os veículos a diesel deixando tudo imundo,
maçanetas, portas, cabelos, narizes, copos; as ruas de lama, bosta
de vacas e detritos de tipos diversos; os açougues e avícolas ao ar
livre, vendendo partes sangrentas cheias de moscas, lavando-as em
mesas de pedra e jogando aparas e penas no chão; os dentistas também
ao ar livre, alguns bem ao lado desses açougues; as buzinas
incessantes que faziam um par de carros parecerem o rush de São
Paulo; o assédio, a cada meio quarteirão, dos vendedores de haxixe,
marijuana, cocaína. Apesar de tudo isso, eu estava começando a
perceber coisas diferentes.
Como
muito do que há na vida, Kat age como um reflexo do que vai dentro
de você. Enquanto a resistência fala mais alto, ela será apenas
uma zona desconfortável ou desagradável. Mas à medida em que você
se vê do outro lado do mundo, mais ou menos obrigada a lidar com a
questão e sem grandes possibilidades de retirada fácil, a
renitência do ego começa a ceder, a ótica vai mudando e a
percepção é ampliada. Talvez seja o jeito possível de dourar uma
pílula, mas é fato que acontece. E também é fato que,
acontecendo, te liberta de grilhões próprios, feito um intensivão
do Enforcado.
http://www.coolephotography.co.uk/travel/portfolio.php?var=religion
Resolvi
jogar fora metade da tralha que tinha levado e deixei só dois
leggings, um moletom, duas camisetas de manga comprida e duas de
manga curta, três pares de meia de algodão e duas de lã de yaki
que lá comprei, as botas de trekking e o casaco de pena de ganso. E
já era muito, considerando-se que carregava a bolsa da Pentax e as
lentes, filmes etc. Desencanei de um monte de coisas, resgatei minha
porção hippie abandonada e tentei aprender como viver Kathmandu de
outro jeito, a encontrar soluções para o que me impedia de viver o
que importava mais. Lembrando das ladies
do século XIX, passei, por exemplo, a levar um lenço com água de
colônia na mão, para passar incólume, quando o cheiro de diesel,
pão chapati e vaca velha morta misturavam-se e entravam em combustão
dentro do meu nariz. Coisas simples assim fazem a diferença entre
ficar livre para experienciar a vida ou rastejar de volta ao hotel
com pena de si mesmo.
http://geminalotus.com
http://www.glenallison.com/734/kathmandu-magic/
E,
por tudo isso, de repente meus olhos passaram a enxergar a
magnificência das lojas de prata e turquesas brutas, as bolsas de
chifre e latão, as tintas em pó e suas cores extasiantes, as sedas
e saris inebriantes, os tapetes de mil e uma noites, o olhar limpo e
o sorriso franco de muitos nepaleses, quase todos, aliás. Deixei de
lado a meticulosidade no comer e passei a almoçar um ravióli "al
burro de yaki" num italiano nepalês que achei na rua, ou o
hamburger de cogumelos e fritas dos hippies da freak
street e a beber o que
eles chamavam de "orange juice"
e era, na verdade, um celestial suco de tangerina fresca. E
fotografei, como um repórter que quisesse gravar o mais possível
para não esquecer, centenas, milhares de cenas: as terríveis e as
belas, as nojentas e as iluminadoras, pois todas eram parte daquilo
que, embora eu não tivesse ainda tanta consciência, estava abrindo
minha cabeça. Havia um mundo inteiro fora do meu mundinho óbvio e
havia milhares de pessoas que viviam diferente do que aqui
consideramos o essencial e, ainda assim, eram muito mais relax,
mais tranquilas, mais sorridentes e tudo isso era muito, muito
interessante.
http://blog.travelpod.com/travel-photo/mightylongway/nepal/1190804820/saris.jpg/tpod.html
http://journals.worldnomads.com/an_oliver/photo/6400/171514/Nepal/Big-smiles-from-traders-in-Kathmandus-Durbar-Square
http://framework.latimes.com/2010/09/14/pictures-in-the-news-23/#/0
Kathmandu
foi o começo da minha descoberta de que ninguém está condenado a
viver apenas este tal mundo óbvio ou dito essencial, afinal.
Naturalmente, desde que reencontre, dentro de si, a coragem de ser
algo mais para além do óbvio.
Pensava
ter diante de mim quase um mês, com stuppas budistas, cremações
hinduistas, frios enregelantes, sustos, encantamentos, além de um
trekking nas montanhas
do Anapurna, no meio disso tudo, para saber mais sobre mim, nesse e
em vários sentidos. Na verdade, teria a vida toda para refletir a
respeito.
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http://www.redrosetravelntours.com/new-updates/far-western-nepal-highlights.html
O
dia ainda não havia nascido
direito e já estávamos no
ônibus que ia nos levar à aldeia de Naudanda, onde dormiríamos e
de onde, no dia seguinte, partiríamos para o trekking.
Subimos sem muita agilidade por uma estrada serpenteante que, depois
fiquei sabendo, estava em obras há algo como espantosos dezenove
anos!... Paramos rapidamente para tomar "milcoffee" e comer
o pão chapati sabor mofo-diesel habitual e foi quando minha mãe
aproveitou para subir no teto do bus, junto com alguns outros, para
poder apreciar melhor a vista. Realmente, a vista era lindíssima,
com os gigantescos platôs escavados na encosta verde, obra do homem
que é capaz de abrir roça em qualquer canto onde tiver mais de meio
palmo pra ele firmar o pé. Ainda assim, eu optei por seguir dentro
do bus mesmo. Minha mãe de vez em quando tinha um pé no Indiana
Jones, mas eu sempre estive mais pra alguém que tem dois pés
esquerdos, seja pra dançar colado, andar de moto ou fazer coisas
meio atléticas.
NAUDANDA
http://www.tushitanepal.com/trip_packages/excursion.htm
Chegamos
em Naudanda no fim da tarde e fomos acomodados numa casa de barro de
uma família nepalesa que topou liberar o andar de cima inteiro em
troca de umas rúpias. Subindo por uma escada tremelicante e íngreme,
chegamos ao aposento que consistia num mar de camas de madeira
cobertas com esteiras de palha finas, uma colada na outra. Jogamos as
mochilas de qualquer jeito e descemos novamente por aquela escada
absurda até a cozinha/sala onde a família cozinhava nosso jantar
numa espécie de fogão de lenha em miniatura, ao rés do chão. Como
ainda ia demorar um pouco, fui zanzar ali perto.
PÃO
CHAPATI
http://trampyandthetramp.blogspot.com.br/2010_07_01_archive.html
Vi
uma casa semelhante à nossa, mais adiante, e ouvi música saindo
pela janela. Uma mocinha de uns doze anos acenou para mim e fez um
sinal, me convidando a ir até lá. Pese aos meus pés esquerdos,
sempre fui kamikaze no quesito "lugares estranhos" e uma
casinha de barro nas montanhas do Nepal era infinitamente menos
arriscado do que muitos lugares onde já havia me enfiado até então.
Portanto, lá fui eu. A mocinha me ajudou a subir e me vi numa saleta
com duas camas e um banquinho, onde umas oito pessoas se
acotovelavam, ouvindo um rapaz tocar um tambor (acho que se chama
madal) e outro uma flauta (murali?). Ali fiquei, ouvindo musica e
rodeada de sorrisos brilhantes feito pérolas. Durante uns quinze
minutos foi maravilhoso ficar viajando naquele som e lugar, mas a
verdade é que o que realmente me interessaria (conversar sobre a
vida dessas pessoas) era impossível, pois nenhum deles falava sequer
uma palavra de inglês. Como o show parecia não ter fim, me
desculpei, por mímica, e fui jantar.
http://www.sursudha.com/about.php
Acordamos
às cinco da manhã, com um chá quente e doce, servido na cama.
Pensei que isso era um jeito muito bom de acordar alguém, bem melhor
e mais eficaz do que um despertador histérico na orelha, se todo
mundo pudesse ter um funcionário pra fazer esse mimo, claro. Comi um
naco de um pãozinho e engoli meio copo de leite com chocolate e
corri pra fora; queria ver o sol nascendo em Naudanda. O frio era de
rachar, mas a pureza cristalina das cores acontecendo enquanto o sol
ia pincelando a terra nepalesa, era um sonho de bom. As montanhas
foram ficando azuis e verdes, o cheiro da terra limpa e orvalhada
entrava pelos poros e ver os habitantes quase descalços e cobertos
apenas por uma manta fina, sorrindo ao nos verem agasalhados da
cabeça aos pés, era um jeito sensacional de se perceber existindo.
Finalmente,
o guia brasileiro nos chamou, apresentou nosso guia nepalês, Kalam
Sin, bem como nossos carregadores, que pareciam varetas finas em
forma de gente e, no entanto, davam de pau em qualquer um de nós, em
força física e destreza caprina. Estes saíram, aliás, em
disparada, antes de nós, como se não tivessem paciência para
esperar esses gordos e lerdos ocidentais rastejarem montanha abaixo.
Animados por essa demonstração de vigor, começamos a descer a
montanha, animadíssimos e falantes, como qualquer amador faria. Pra
baixo todo santo ajuda, dizem, mas depois de quase cinco horas, se
não estávamos exaustos pois essa primeira etapa era só uma
descida, ao menos estávamos mudos, pois falar e andar ritmadamente é
coisa que não combina bem.
http://www.wildernesstravel.com/trip/nepal/everest-annapurna-private-journey
Caminhar
dessa forma é diferente de andar no Ibirapuera ou numa esteira de
academia. Andar por tantas horas demanda encontrar um ritmo ou
cadência pessoal, que, uma vez alcançados, te fazem seguir quase ad
aeternum, sem muito esforço.
O resultado é que a fila se esgarça e há os que vão lá na
frente, ou os que ficam mais atrás e vão parando para olhar melhor
uma pedra brilhante ou uma libélula. Assim que os egos se acalmam e
toma-se consciência de que não é uma competição (coisa difícil
para nossas cabeças do oeste), cada um começa a naturalmente seguir
seu ritmo próprio, físico e mental, pois sabe que de qualquer
maneira todos chegarão ao mesmo lugar e que importa mais de que
forma pessoal você
faz a sua jornada
acontecer (como também me ensinou o tarô, aliás; um ensinamento
que ali tive a chance de aplicar de forma prática).
Apesar
de gordinha, sempre fui ágil e meu andar, rápido, o que me colocou
de forma natural lá adiante na fila, até que tivemos que cruzar um
regato. Vertigem é coisa que nunca tinha me passado pela cabeça,
por isso fiquei apatetada quando percebi que todos iam atravessando o
riozinho, na verdade um fio de água estreito e raso, agilmente
pisando nas pedras meio soltas e seguindo numa boa. E eu, enquanto
isso, de repente estaquei no meio da água, absolutamente incapaz de
continuar. Na verdade, incapaz de me mexer. Lembro de olhar para
adiante e ver o grupo passando por mim e seguindo e eu ali,
estupidamente imobilizada, voltando a olhar aquela água cristalina
passando por baixo dos meus pés. Sentia-me ridícula e quase
gargalhei pois minha cabeça ficava me dizendo: "Pirou, é?! Vai
aí, menina! Mas que palhaçada é essa?? Anda!!".
http://acopictravel.com/?linkId=2
Levantei
de novo a vista e vi minha mãe parada, me olhando lá de longe.
Ninguém me conhecia tão bem quanto ela. Dava pra perceber que ela
não sabia o que estava acontecendo, mas de alguma forma sabia
que eu estava com problemas. Comecei
a rir e a dizer que eu não tinha a menor ideia do que estava
havendo, que simplesmente não conseguia me mexer, mas ela não podia
ouvir, porque eu nem mesmo conseguia falar mais alto. Naquele minuto,
vi Kalam Sin voltando rapidamente em minha direção, com jeito de
quem já tinha visto aquilo antes. Chegou perto de mim, me estendeu a
mão e me disse: "No problem. Don't look down". Não
gostava, então, de precisar ou de receber ajuda dos outros, mas não
tive escolha. Segurei na mão dele e, olhando pra cima, fui pisando
graciosamente como um macaco bêbado, até conseguir pisar em terra
firme. Kalam sorriu, disse: "Vertigo" e saiu andando. Ali
aprendi que para seguir caminho, embora seja fundamental aprender a
escolher por si mesmo, algumas vezes precisamos apenas parar de olhar
os próprios pés, frear o incessante diálogo interno e simplesmente
ter a humildade de confiar no conhecimento de quem já está uns
passos à frente.
http://cauldronsandcupcakes.com/2012/01/18/how-to-nurture-your-sense-of-self-love/
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KARKINETA
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http://www.nepalyogatrek.com/sirubari-circuit-yoga-trek.php
Almoçamos
à beira do rio, descansamos e começamos a encarar a caminhada, pois
dali pra frente seria só subida. De acordo com o guia brasileiro,
"era tudo light, coisa pra amadores", então estávamos
todos tranquilos. A trilha, agora, era uma via estreita, tendo
barranco de um lado e nada do outro, espaço para pouco mais que uma
fila indiana que subia e outra que descia. Às vezes, ouvíamos os
sinos dos burricos e grudávamos no barranco, porque eles vinham
carregados, ocupando a via toda e não muito preocupados com o seu
bem estar. Mas eram lindos e aquele som dava à coisa um ar meio
bíblico, muito interessante.
http://www.icimod.org/photocontest/2010/govinda-b-shrestha/20100508_053805.jpg.php
Vi
mulheres carregando fardos na cabeça e bebês nas costas,
sorridentes, as roupas coloridas e longas tranças balançando.
Garotos literalmente rindo e correndo pelo caminho, feito cabritos, à
beira do nada. Certos lugares eram menos íngremes e mais largos,
pequenos platôs, onde havia alguma casinha de barro, mulheres
debulhando grãos na frente, falando e rindo, copos e pratos de metal
brilhando lá dentro. Tinha visto algumas delas lá embaixo, areando
essa louça de metal com a areia branca do leito do rio e fiquei
pensando se todas iam até lá cada vez que tinham que lavar a louça.
Descartei a hipótese porque pareceu absurda, mas talvez não seja. A
aceitação tranquila de certas limitações, ali, parecia ser mais
comum do que o esforço, em alguns casos provavelmente insano, de
mudá-las.
http://www.wateraid200.org/contact.html
Grande
parte da subida era feita de degraus de pedra ou terra. Na média,
degraus de uns 20 centímetros de altura, mas alguns eram mais altos.
Subir uma escada interminável é algo que começa bem e vai ficando
cada vez mais difícil. No começo é simples, dali a um tempo é uma
tortura. Depois de algumas horas, para alguns de nós fica
simplesmente impossível. Aprendi, com duas moças experientes, a
subir em câmera muito lenta, dica que ajuda no sentido do esforço
físico, mas psicologicamente piora muito, pois leva-se o triplo do
tempo e a cabeça fica berrando "NUNCA VAI TER FIM!! SOCORRO!",
pra não dizer o que ela realmente
berra. Você vê o sol começar a se por, a luz ir diminuindo cada
vez mais e nada de chegar na aldeia onde vai dormir. Na verdade, cada
vez que pergunta "Karkineta?" (nosso primeiro destino) a um
passante, ele ri e diz "Karkineta? Up, up, up", apontando
algo lááá longe (e lááá em cima).
http://robertolacaze.blogspot.com.br/2010/05/de-shivalaya-ate-namche-bazaar-trekking.html
Começamos
a subida por volta das duas da tarde. Às seis, eu estava pinéu.
Eram quase sete quando finalmente cheguei na tal aldeia de Karkineta
e só o que eu queria, naquele exato momento, era descobrir como cair
fora daquela demência. Pensei em descolar um daqueles sinos, amarrar
no pescoço e descer montanha abaixo, derrubando o que visse pela
frente, feito os burricos do caminho. Afinal, naquele momento, aquela
viagem me parecia exatamente isso: uma ideia de jerico.
Quando
consegui respirar normalmente de novo, percebi que alguns
componentes ainda estavam chegando, um a um, destruídos, mas ainda
tentando aquele sorriso "vamos manter a harmonia do grupo"
que me causava impulsos homicidas. Chegaram todos, menos minha mãe.
Finalmente a vi chegar, literalmente carregada por um dos
carregadores e pelo guia nepalês. Meio chorando, meio tentando se
conter, me olhava desesperada, mas sem dizer nada. Fiquei calada, o
que, em mim, não é um bom sinal. Jantamos e fomos dormir.
http://www.icimod.org/photocontest/2010/sirish/3.JPG.php
Eram 2 da manhã, eu olhava o teto e pensava em como ir embora, quando minha
mãe sussurrou: "Você está acordada?". Respondi que sim e
ela me disse que estava pensando em desistir do trekking. Respondi
que eu já tinha desistido. Ela considerou ser uma pena o
que iria deixar de ver, eu respondi que o mundo estava cheio de coisas
bonitas às quais eu nunca teria acesso por limitações
diversas e que, portanto, isso pra mim não era um problema.
De
manhã cedo, ela conversou com o guia brasileiro, que disse
que o caminho era muito mais fácil, dali pra frente. Levei o guia
nepalês pra um canto e perguntei se era verdade. Kalam Sin, adorável
ser humano, me olhou e disse que em alguns pedaços, sim, era mais
fácil, mas que ele não podia mentir e me dizer que não seria tão
cansativo quanto aquele primeiro dia de subida, porque a verdade é
que seria, sim. Agradeci e pedi a ele que me ajudasse a ir embora, o
que ele prontamente resolveu, destacando um guia nepalês encarregado
de me guiar até Pokhara e me instalar numa pousada.
http://www.virtualtourist.com/travel/Asia/Nepal/Things_To_Do-Nepal-TG-C-1.html
Minha
mãe resolveu ir embora também e, enquanto o grupo rumava montanha
acima, nós descíamos, aliviadas. Nosso guia não falava uma palavra
de inglês, mas era um sonho doce e gentil. A descida levou um terço
do tempo e, não sei como, de repente nos vimos numa estrada mais
ampla e numa aldeia movimentada, onde o guia descolou uma carona num
caminhão, até parte do trajeto. Nos deixou em outra aldeia, onde
vimos um ônibus sendo disputado a tapas. O guia nos fez sinal para
esperarmos, subiu no teto do bus e literalmente abriu espaço a
cotoveladas, nos fazendo, então, sinais imperiosos para que fossemos
ocupá-lo. Subimos e ele sorriu, feliz da vida, porque as cotoveladas
tinham surtido efeito.
Começamos
a viagem para Pokhara com o sol no rosto, o vento no cabelo e
simpaticamente amontoados entre dois escandinavos e vinte nepaleses.
A promessa da beleza do lago de Pokhara (e de algum conforto)
fez minha mãe dormir sentada, em paz. Já eu engatei num papo
agradável, ainda que na linha "Me Tarzan, you Jane", com
um dinamarquês.
POKHARA
-
http://hotelstravelpal.com/Asia/Asia%20South/Nepal/Destinations/Pokhara%20Valley%20Nepal.htm
De
repente, pensei na carta da Roda da Fortuna do tarô e me lembrei das
mulheres da montanha, descendo pra lavar a louça. Percebi que
realmente, às vezes, é melhor a aceitação tranquila de certas
limitações, do que o esforço, no meu caso realmente insano, de
superá-las.
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http://www.completehotelguide.com/hotels/Asia/Nepal/Pokhara/
Quando
chegamos em Pokhara, o bus parou alguns metros antes da entrada e
todos desceram correndo. Fizemos o mesmo, sem entender nada, e aí
tivemos que correr de volta ao bus, após ele ter passado a cancela.
Era algo tão patético, que gargalhávamos enquanto corríamos.
Aparentemente, por razões que só a burocracia universal saberá
explanar, o ônibus não podia entrar na cidade lotado. Só que a
cancela ficava ainda um pouco longe do que era o genérico de
rodoviária e nosso ponto final, daí o ter que subir de volta. Coisa
de louco mesmo.
Nosso
guia procurou um táxi e partimos rumo ao hotel. No meio do caminho,
o Louco resolveu aparecer de novo: o carro parou e entraram dois
nepaleses no banco da frente, espremidos entre nosso guia e o
motorista. Assim, simplesmente: entraram dois sujeitos, pronto. Eu,
sem entender nada, minha mãe menos ainda. Muito blábláblá em
nepali depois, paramos em frente a uma casinha meio decrépita.
Saímos do carro e começou uma discussão animada entre os
nepaleses. Como nosso guia não falava nada de inglês, estava
difícil entender o que estava acontecendo. Aflito, ele nos fazia
sinais, eu arriscava umas palavras em inglês, os dois sujeitos e o
motorista sorriam e falavam todos ao mesmo tempo na minha orelha e
minha mãe gemia que aquilo era uma barbaridade.
http://blog.travelpod.com/travel-photo/keelaurow/1/1290170180/lake-fewa-pokhara.jpg/tpod.html
Exausta,
dei um berro, na linha fina: "Parou geral!", em português
mesmo. Funcionou e, no silêncio que se abriu, consegui me comunicar
por mímica com o guia. Além disso, tendo crescido no Brasil, mesmo
uma fresca e tonta como eu aprende a detectar a malandragem de um
Mago invertido. Juntando tudo, percebi que os dois sujeitos queriam
que a gente se hospedasse naquela casa (que devia ser deles e com a
qual ganhavam umas rúpias por fora). Nosso guia insistia em que a
gente tinha que ir para a pousada que tinham lhe indicado. E era
evidente que era exatamente isso o que eu iria fazer, mas para não
piorar a situação, que já era pirada por si só, falei que ia ver
a casa e que se eu não gostasse eles iam nos levar onde nosso guia
ordenasse, imediatamente. Todos aquiesceram, falei pra minha mãe
ficar boazinha no táxi e lá fui eu.
Era
uma casinhola periclitante, um quarto minúsculo com chão de terra
batida, dois catres de madeira e palha e uma janela tão ínfima no
alto que mais parecia um cativeiro. Ainda por cima, tudo pintado
daquele azul-céu deprimente que a gente vê em cemitério do
interior. Saí ventando e dizendo "No!". A trupe toda
rapidamente aboletou-se de novo no carro e nosso guia indicou o
caminho para a pousada. Dei uma gorjeta aos três nepaleses malucos,
agradeci a sugestão e me livrei deles. Agradeci imensamente ao guia,
tentei lhe dar um dinheiro, mas ele recusou. Então perguntei se ele
queria ficar ali uma noite, ao que ele sorriu e respondeu com
trejeitos de quem diz "Mas, minha senhora, que que é isso? Não
pega nem bem...". Saudou-nos com um namastê gentilíssimo e se
mandou, andando, de volta às montanhas. Ele era tão educado, tão
elegante, tão gentil, tudo que minha mãe mais prezava, que ela
ficou olhando-o ir embora com olhos comovidos e pensei que, quem
sabe, em outra encarnação esses dois talvez pudessem vir a se
encontrar de outro jeito.
http://dadirridreaming.wordpress.com/2011/11/14/weekly-photo-challenge-wonder/
Finalmente,
nos registramos e fomos para o nosso quarto. Apesar de simples,
aquilo era uma visão Ali Babá, naquela altura dos acontecimentos:
tinha camas de verdade, com travesseiros e cobertores bons, dois (!)
abajures e um banheiro com água quente (que funcionava!) e tudo
imaculadamente limpo. Almoçamos muito bem no restaurante do hotel,
minha mãe foi desabar numa siesta merecida e eu fui dar uma
volta. Caminhei pela rua cheia de restaurantes, pousadas, cachorros e
lojinhas, tudo com cara de Vila Madalena, da antiga Vila Madá. Um
hippie estiloso, colorido, simpático e acessível - e absolutamente
ninguém apressado, em lugar algum. Voltando à pousada recebi o
impacto de ver, atrás dela, no alto, mas não tão longe assim, o
pico Machapuchare, todo cor de rosa e laranja pela luz do fim da
tarde. Lembro de ficar repetindo, abobalhada, "Gente, como o
mundo é bonito!... Como é bonito!...".
Como
seu lago, Pokhara foi pura Temperança, a minha Temperança. Um oásis
de tranquilidade, uma calma renovadora de energia e de esperança,
algo muito especial. Levei quase dez anos para encontrar esse mesmo
tipo de paz em outro lugar. Ficamos ali uma semana. Compramos
colares, zanzamos, conversamos com os moradores, lemos à beira do
lago, sossegamos a mente e respiramos. Bom, também investi em alguns
rapazes hospedados no hotel, afinal não há nada de errado em se
divertir um pouco com as coisas mais mundanas também, oras.
Finalmente, decidimos voltar para Kathmandu e ficar passeando por lá,
esperando a volta do grupo.
http://www.squidoo.com/what-to-see-and-do-in-pokhara-nepal
Fui
atrás de procurar uma alternativa de transporte que não fosse um
bus, pois, com o estado da estrada, ele levava algo como dezenove
horas para chegar em Kat. Conversando com o gerente da pousada, ele
sugeriu uma beni. Evidente, eu não sabia o que era uma beni e ele
tampouco conseguia explicar, no seu mix de nepaglês. Afinal, recorri
a um método tão ancestral quanto a mímica, como bem atestam as
paredes nas cavernas de Lescaux: desenhar. O gerente riscou uns
traços que lembravam um pão pullman pequeno e a luz se fez: era uma
kombi! Ok, a viagem era de umas oito horas, então uma kombi era pior
que um carro, mas bem melhor que um bus. Ótimo, iríamos de kombi.
Claro, o gerente tinha um cunhado, primo ou sobrinho que tinha uma
kombi e que ficaria feliz de nos levar a Kat pela módica soma de...
Cem dólares. Uau. Cem dólares, ali, era uma fortuna, mas não houve
acordo: cem dólares ou neca de pitibiribas, como se dizia no século
passado. A úlcera da minha mãe vinha dando o (por hora) sutil ar da
graça, então topamos.
Passo
por cima das próximas nove horas, sacolejando dentro de uma kombi
cuja suspensão tinha tido seu auge provavelmente em 1972, num
estrada com pedras e buracos imensos a cada vinte metros. Saímos às
oito da manhã e chegamos, detonadas, ao cair da tarde. Nos jogamos
no quarto e só rastejamos para fora dele à noite, para jantar. Por
algum passe de mágica muito estranho, descobrimos (ou percebemos?)
que havia um restaurante chinês maravilhoso ao lado do nosso hotel.
As razões pelas quais nunca o havíamos visto antes, é coisa que
computo aos mistérios divinos. O fato é que jantamos uma comida
chinesa sensacional (e que não tem absolutamente nada a ver com
esses delivery que hoje temos, claro).
http://whatsyourhobby.co.uk/it%E2%80%99s-all-about-chinese-cuisine.html
O
grupo voltou depois de alguns dias, falantes e felizes por poderem
nos dizer (ou não seriam humanos) o quanto havíamos perdido de
sensacional, embora mais tarde alguns tenham nos dito, extra
oficialmente, que se arrependeram de não ter ido embora também,
porque sua exaustão tinha atingido níveis intoleráveis. E, como
ninguém ia mesmo chegar tão perto assim do topo, para dizer que o
esforço tinha sido compensado pela visão da neve aos pés de um dos
picos mais altos do mundo etc, a verdade é que o resto do caminho
tinha sido mais ou menos como aquele primeiro dia, sem nada de muito
espetacular ou diferente do que já havíamos visto.
O
ser humano é um exagerado, para bem ou para mal, de modos que não
acreditei em nenhuma das versões, então apenas continuei contente
por ter conseguido detectar bem o que eu sentia e ter conseguido ser
fiel a isso, pois, embora nem sempre fácil de discernir na bagunça
mental, esse é o farol mais correto a seguir: a luz do Eremita,
nossa bússola pessoal,
que só cintila quando a enxergamos e que nos leva exatamente aonde
temos que ir. Afinal, se eu não tivesse ido embora do trekking, não
teria conhecido Pokhara, minha amada aldeia colorida, que beira um
lago imenso, verde-esmeralda e rodeado de plantas, belo e amável
feito a paz que o mundo todo um dia foi.
http://muktikumar.wordpress.com/category/gandaki-zone/
Depois
de alguns dias de descanso para uns e de compras para outros, era
hora de nos despedirmos do Nepal e seguirmos para Agra, na Índia,
lar do Taj Mahal.
......................................................................................................................
http://agra-india.com/sikandra.htm
Agra,
no estado de Uttar Pradesh, é tão antiga que há referências a ela
no Mahabharata. Lá tem o Forte Vermelho, o mausoléu do Imperador
Akbar, vários lugares para ir e para ver, mas a verdade é que, para
mim, essa cidade resume-se a duas coisas: água salgada e o Taj
Mahal.
Chegamos
lá no começo da noite, descansamos um pouco e fomos jantar no hotel
mesmo. Vindos do nepal, a mudança foi intensa e, por incrível que
pareça, não foi fácil voltar a usar elevador, pisar em carpete e
lidar com louça limpa em restaurante, sem estranhar. O ser humano é
muito esquisito, esse é um fato. Mesmo assim, a (não tão) sutil
lembrança de que ainda estávamos bem longe de casa foi o cafezinho.
http://agra-india.com/wheretoeat.htm
Um
café bom foi raro de encontrar no Nepal, então, sentados naquele
restaurante meio asséptico de algum hotel Inn da vida, a perspectiva
de um café com gosto de café animou todo mundo. Ao primeiro gole,
meus olhos subiram até a raiz do cabelo. Era simplesmente salgado.
Já tomou café salgado? Um que você adoçou antes de beber,
inclusive? Parece chá de pneu e ainda por cima vencido. Depois nos
disseram que lá a água era assim, salgadinha, mas não sei se isso
não foi uma desculpa esfarrapada pelo cozinheiro ter salgado a água
do café. Fiquei pensando se "agra" não quereria dizer
"amarga", que talvez fosse usado no lugar de "salar",
apenas por estética sonora. Fui dormir pensando em besteiras desse
tipo e com aquele gosto de corvo na brasa que não saía da memória
de jeito nenhum.
http://ma.tt/2009/02/taj-mahal-agra/mcm_9447/
O
dia seguinte compensou tudo. Acordamos cedo e embarcamos num bus que
passeou pela cidade até parar na entrada do Taj Mahal. Nosso guia
brasileiro foi ver sei lá o que e enquanto isso ficamos no ônibus,
batendo papo com os camelos que chegavam pertinho, pertinho, mas bem
pertinho mesmo, das janelas. Camelo é um bicho sensacional, mas que
exige respeito e requer alguma distância, porque eles cospem feito
caipira que masca fumo de rolo. Ainda assim, o olhar deles de "não
to nem aí" é delicioso de ver. E, sendo o ser humano a besta
que é, capaz de aprisionar e escravizar bicho de todo tipo, havia
ainda alguns elefantes maravilhosos disputando o trânsito com os
carrinhos que, sábios, lhes davam passagem rapidamente. Finalmente,
nosso guia nos chamou e lá fomos nós conhecer a homenagem de amor
eterno feita pelo imperador Shah Jahan à sua amada Mumtaz Mahal.
Ao
longe, o Taj é opulento. De perto, é um tipo de luxo que a gente
esqueceu, porque não tem nada a ver com ouro ou griffes. É o
luxo do esmero, da delicadeza, da precisão, da exigência afetiva. O
luxo de um Diabo bien élevé.
Um
desses luxos primorosos está nas espécies de biombos rendados em
pedra ou mármore, também visto em janelas no Forte Vermelho, que,
como se o trabalho em si fosse pouco, ainda somam arabescos quase
psicodélicos. O piso parece manteiga de mármore e as paredes,
também de mármore branco, tem entalhes de pedras semipreciosas
formando desenhos. Entalhes tão exatos que não são perceptíveis
nem passando o dedo. Além disso, maravilha mesmerizante, se você
encosta uma lanterninha na parede e passeia pelas pedras coloridas,
elas vão se acendendo e apagando, como luzes de natal em efeito
dominó, por dentro da parede! Na minha cabecinha camponesa,
só apareceu uma frase: "Vai amar alguém assim lá em Agra!".
Uau.
http://www.calcutta-network.com/2010/10/india-images-interior-of-the-taj-mahal-unesco-world-heritage-site-agra-uttar-pradesh-state-india/
Alguns
voltaram à noite, para ver o Taj paisagisticamente iluminado, mas eu
preferi ir jantar com os outros, por aí. A verdade é que Agra não
deixou mais marca nenhuma em mim. Nem precisaria, depois do
espetáculo deslumbrante do Taj Mahal.
Em
seguida viajamos para Khajuraho, o que animou alguns dos indivíduos
mais reprimidos e secretamente safadinhos, pela perspectiva de ver os
famosos entalhes eróticos do Kama Sutra nas paredes e torres dos
templos (que, aliás, não existem no interior, pois supõe-se,
justamente, que essas ideias mais terrenas devam ficar fora do lugar
de conexão espiritual).
A
verdade é que o enfoque tântrico não é coisa que a maioria dos
ocidentais possa compreender facilmente, especialmente tendo, quase
todos, uma estrutura judaico-cristã por formação, com todo o
conceito de pecado e danação embutidos nela, especialmente quando
nem estão cientes disso. De maneira que a maioria dava sorrisinhos
meio histéricos e olhadinhas pretensamente pícaras, algo compatível
com garotas de 12 anos. Mas a melhor tirada foi a da minha mãe, que,
observando um dos homens do grupo fazendo piadas e dizendo abobrinhas
do tipo "Nossa! Mas como é que faz essa posição aí, hein?!
Deixa ver se consigo..." e rolando de rir, ela,
surpreendentemente, sussurrou no meu ouvido: "Se esse idiota, a
esta altura da vida, ainda não fez nada disso, é porque desconhece
o que seja sexo". Go, mom!
http://blog.travelpod.com/travel-photo/wareameye/30/1295554976/16_khajuraho.jpg/tpod.html
Khajuraho
a princípio parece meio bobo, gramados pontilhados de templos que
parecem todos iguais, mas aos poucos você vai percebendo que eles
parecem castelos feitos de areia, aqueles que a gente faz pingando
areia molhada. E começa a sentir que há, ali, uma paz celestial. É
um dos poucos lugares onde minha memória não traz, primeiro, uma
foto de hordas de pessoas zanzando. Passear por ali é agradável e
as esculturas são tão preciosistas quanto os entalhes do Taj Mahal
( e não são todas eróticas, para desapontamento de muitos).
Fiquei olhando um hindu meditando ali, um tempão. Nem percebi,
peguei carona e saí flutuando.
http://www.northindia-tour.com/khajuraho-temples.html
Nossa
próxima parada era Varanasi (ou Benares), onde o Ganges é o coração
vivo da cidade e recebe tanto as cinzas das cremações, quanto serve
de ritual inicial do dia de milhares de pessoas. Diria milhões,
porque o que não havia de gente em Kajuraho, só podia ser porque
estava todo mundo em Varanasi.
.....................................................................................................................
http://vridar.wordpress.com/2010/03/29/marks-rent-a-crowd/
Acordamos
em Varanasi ao som de "The var start". No seu inglês ao
curry, o rapaz que nos trouxe o café da manhã alertou-nos para o
fato que, há dias, vinha instalando-se insidiosamente nas
preocupações de todos: a Guerra do Golfo tinha, finalmente,
estourado. Fui olhar o mapa-múndi que havia no saguão e percebi
como era diferente de ouvir a mesma notícia quando estamos no
Brasil, tão mais longe. A possibilidade da guerra nos atingir, ali,
soava a um risco real.
Minha
mãe tinha planejado seguir, depois, para a Grécia e lá
encontrar-se com meu irmão. Com essa novidade, por telefone os dois
concordaram que talvez fosse melhor não ir. Pena, porque teria sido
a viagem do meu irmão com a mãe "dele",
algo que possivelmente ele recordaria tantos anos depois, assim como
agora lembro da minha.
http://traveladvisory.in/GoldenTrianglewithKhajuraho.aspx
Como
disse antes, a multidão em Varanasi era algo de gerar a desconfiança
de que havia, logo ali, algum festival nacional. Era tanta gente, mas
tanta, que de repente nos vimos presas num tráfego de pessoas, duas
ou três pistas numa direção e outras duas ou três na direção
contrária. O fluxo era tão lento e sufocante quanto andar pelas
marginais de São Paulo às seis da tarde. A multidão nos empurrava
adiante, para o lado que não queríamos ir, impedindo-nos de sair
daquele fluxo intermitente. Com o aprendizado das cotoveladas
amigáveis adquirido no Nepal, consegui levar-nos até a ilha entre
as vagas. A cena era tão absurda que desatamos a gargalhar, as duas.
Finalmente, como criança calculando a entrada na hora de pular
corda, nos engatamos na direção certa e nesse louco rio humano nos
deixamos levar até que houvesse alguma dispersão. Foi uma das cenas
mais malucas de uma viagem cheia delas.
http://www.panoramio.com/photo/18197644
Na
madrugada seguinte, acordei às cinco para ir ver o sol nascer no rio
Ganges. O grupo era menor, pois nem todos tinham tanta vontade assim
desse programa, mas eu não tinha esse problema. Fui, portanto,
disposta a fazer lindas fotos (que fiz e, de novo, é uma pena que
não possa mostrar as minhas, embora as que aqui mostro sejam
bastante parecidas). Atravessando rapidamente os leprosos que
mendigam nas laterais das escadas que descem ao rio, embarcamos para
um passeio que me daria algo tão ou mais belo do que o espetáculo
do Taj Mahal: o voluptuoso sol oriental nascendo, refletido no rio
mais sagrado da Índia. Não sei dizer o que encanta mais: se as
cores no céu, do laranja e rosa ao amarelo profundo, ou os brilhos
na água, entre a prata, o cobre e o ouro. O nascer do sol no Ganges
é um quadro impressionista no coração do meu caminho e sempre o
será.
http://india.tourstravelspackages.com/varanasi-tour-package/
A
vida no Ganges fervilha. Todos começam o dia ali, tomando banho,
lavando roupa ou apenas meditando. A verdade crua é menos poética,
bem menos, pois há detalhes desse cotidiano que nos chocam
profundamente, já que as escadarias também servem de banheiros
públicos, além do fato de que a água, vista de perto, é um tanto
nojenta, entre resíduos que incluem as cinzas das cremações. Ainda
assim, anos depois, o que minha sensibilidade reteve foram sorrisos e
saris coloridos cintilando ao sol e uma interação de tribo que tem
menos apego à individualidade ou mais consciência de irmandade, não
sei bem. Talvez seja mera projeção, mas é assim que então percebi
essa experiência.
http://intuitivelight.net/the_will_of_love.htm
De
lá fomos para Nova Delhi, onde o mundo ocidental já tem um pé bem
assentado, embora mesclado. As ruas já lembram mais a avenida
Brasil, o tráfego intenso e a poluição habitual revezam-se com
elefantes e camelos enfeitados e há mais sikhs de turbante em cima e
gravata ocidental embaixo. Ali, sim, havia um festival nacional
acontecendo e, além disso, a guerra estava deixando todo mundo
nervoso, o que nos permitiu marcar a passagem para Bangkok, mas nos
impediu de confirmar a passagem de volta, de Bangkok ao Brasil. Isso
iria gerar um dos momentos mais angustiantes que já vivi. Como o Sol
do tarô, a resplandescência clareia, mas ao mesmo tempo pode
cegar-nos. Naquele momento, no entanto, não tinha a menor
consciência disso e penso que, muitas vezes, a ignorância tem algo
de bênção.
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http://www.azeotrope.org/~khym/thailand.html
Milhares
de pessoas amam a Tailândia, mas eu não sou uma delas. Como sempre
digo, só fiquei três dias em Bagkok, não fui conhecer as praias e
é possível que isso faça toda a diferença. Seja como for, esse é
um lugar ao qual não desejo voltar.
Na
ida já tínhamos sido tratados daquela forma grotesca no aeroporto,
como já relatei. Agora, no táxi que nos levava do aeroporto ao
hotel, eu rezava para que o guardião dos junkies acompanhasse
o motorista até chegarmos ao hotel. O cavalheiro estava de pó
(leia-se cocaína) até as orelhas e dirigia feito um absoluto
demente, a uma velocidade alucinada. Fungava de um jeito
característico, o que fez minha inocente mãe comentar comigo que
ele devia estar seriamente gripado. Mas duas pupilas gigantes, os
movimentos nervosos e aquele maxilar travado característico, a mim,
que já tinha visto esse quadro muitas vezes antes, não tinham como
enganar.
BUDA
DEITADO http://nucleodaborga.blogspot.com.br/
Bangkok
tem carros demais, gente demais, e, francamente, Budas demais. Há o
Buda deitado, o Buda de jade, o Buda magro, o gordo, Budas à rodo. O
primeiro, mal pude vê-lo, de tanta gente à minha volta; o segundo
era muito bonito, mas pequeno e meio no alto, também não se via
bem; os outros eu desencanei de ver, mesmo porque, na minha opinião,
Buda não é algo para ver, é algo para sentir dentro de si mesmo.
BUDA
DE JADE http://www.bangkokmag.infothai.com/emeraldhistory.htm
Bangkok
apresentava, também, hotéis caríssimos, onde trafegavam executivos
ocidentais e prostitutas orientais, os dois de alto luxo. Fiquei um
tempo em frente a um hotel, só olhando. Eles vestiam ternos de
griffe
e relógios Rolex, elas, lindas, dirigiam maseratis e porsches. Na
porta, um restaurante chiquérrimo ostentava, naquele calor pegajoso,
uma enorme escultura de gelo, mantida por um ar condicionado
exclusivamente para ela e deixando claro que dinheiro, ali,
absolutamente não era um assunto.
HOTEL
DE LUXO
http://www.livetradingnews.com/the-5-star-luxury-of-the-peninsula-bangkok-66339.htm#.T_JFpVImviw
O
que Bangkok tem, para mim, de realmente adorável é o floating
market: uma espécie de shopping de artesanato construído sobre
palafitas e ao qual se chega apenas de barco. Vimos bairros de
palafitas, onde várias casas bonitas, com flores nas janelas e
portas bem pintadas, parecem casas de bonecas, mas flutuantes.
Sobe-se ao floating market atracando o barco junto a escadas de
madeira. Tanto os vendedores dali, quanto os que vendem frutas,
peixes etc em canoas ao redor, são simpáticos e acessíveis.
Compramos uns cáftans ótimos, colares de contas, chapéus típicos
e muitas outras coisas. Foi uma tarde agradável e a única
recordação tranquila que tenho de Bangkok.
FLOATING
MARKET
http://www.thristhan.com/im-going-to-bangkok-no-matter-what
Chegando
ao hotel, decidimos beber alguma coisa no vazio restaurante, pois o
calor nas ruas era indescritível. As roupas colavam no corpo, meus
óculos escorregavam pelo nariz e minha mãe dizia que a qualquer
momento o rosto dela iria cair, de tanto derreter. É mais quente que
o verão no Rio ou em Buenos Aires, muito, mas muito mais quente. E a
diferença é que em cada lojinha, bar, joalheria ou restaurante, o
ar condicionado é ligado no máximo, o que pode ser bom ou ruim,
depende do ponto de vista.
Ficamos
uns vinte minutos ali, com aquele monte de pacotes à nossa volta e
finalmente fomos para o quarto, onde percebi que tínhamos esquecido
uma das sacolas. Desci e me senti numa comédia: o restaurante, nos
cinco minutos entre eu ter saído e voltado, tinha se transformado
numa boîte. Na penumbra pontilhada pelo globo de espelhos no teto, a
musica techno gritando e luzes coloridas piscando, sorri e
berrei na orelha de um garçom que tinha esquecido minha sacola. Ele
- e todos os outros - começaram a dizer que não, que na mesa não
havia nada quando saímos. Notei que alguns riam disfarçadamente,
mas mesmo assim fui até o conciérge e expliquei, calmamente,
o que havia acontecido. Ao ver que ele também sorria como quem diz
"Xi, dançou, minha senhora...", deixei a gentileza de
lado, subi o tom e avisei que se minha compra não me fosse devolvida
em dez minutos eu ia fazer um salseiro que ia sair no jornal local.
Subi e - juro por Deus - em sete minutos (contados no relógio) ouvi
uma discreta batida na porta. Abri e não havia ninguém, mas a
sacola com a compra estava lá, no chão.
UMA
DAS DIVERSAS JOALHERIAS QUE FOMOS EMPURRADOS A VER...
http://www.thailandhighlight.com/bangkok-shopping/Gems-gallery-World-Biggest-Jewerly-Store-Bangkok-.html
O
resto do tempo em Bangkok foi gasto tentando chegar a lugares e
sendo, invariavelmente, desviados para joalherias. Acho que a maioria
das pessoas ganha comissão como um bico, porque até mesmo uma suave
mocinha em uniforme escolar nos colocou num táxi, dizendo em bom
inglês que era para ele nos levar ao Grande Palácio, depois desatou
umas frases em tailandês e, resultado, lá fomos nós para mais uma
joalheria.
Nem
mesmo o Grande Palácio conseguiu me cativar. Era imponente, era
vistoso, era interessante, mas depois de ter visto o que vi em
Pokhara, em Agra ou em Kajuraho, esse palácio me fez pensar em
Joãosinho Trinta e na efemeridade do ilusório luxo do carnaval.
Poderia explicar porque, mas esqueça o que eu disse; quase todo
mundo fica deslumbrado, eu é que sou difícil.
GRANDE
PALACIO
http://universodosviajantes.com/mulher-viajando-sozinha-na-tailandia/
GRANDE
PALACIO
http://www.minube.com.br/sitio-preferido/grande-palacio-real-de-bangkok-a100
Finalmente,
era hora de voltar para o Brasil. Embarcamos em outro táxi cheirado,
acredite se quiser (não, não era o mesmo motorista), e chegamos a
um pesadelo. A guerra do Golfo tinha apertado e havia literalmente
uma multidão tentando sair da Tailândia. De cima, olhávamos aquele
formigueiro, aflitas. Sabíamos que as chances de não conseguirmos
embarcar eram grandes, pois não tínhamos confirmado a passagem de
volta ao Brasil quando estávamos em Delhi. Além de estarmos
exaustas de zanzar pelo diferente, o outro problema grave era que
nosso dinheiro tinha simplesmente acabado. Aqueles não eram tempos
de internet como agora, aquilo não era Paraty e nós também não
éramos pessoas com cartões cheios de crédito, bem ao contrário.
Enquanto
minha mãe foi despachar as malas, eu engatei numa das filas (havia
umas vinte, todas imensas) dos balcões de confirmação das
passagens. Lá fiquei, meio rezando, meio percebendo quão cansada eu
estava de tanta novidade, de tanta informação, de tanta adrenalina.
Olhava meus companheiros em volta e percebia o nervosismo no ar.
Corria um boato maluco de que a guerra ia alcançar Bangkok, o que
deixaria todo mundo preso ali, então havia gente literalmente
beirando a histeria, essas coisas que germinam quando gente demais se
junta e a burrice se instala e se espalha.
Depois
de um bom tempo, na minha frente havia só mais um passageiro,
chegaria minha vez e nada da minha mãe voltar com as passagens. O
rapaz me chamou e lá fui eu começando a inventar uma enrolação
qualquer, quando finalmente ela chegou. O rapaz pegou nossos
passaportes e as passagens, olhou, disse que tínhamos que ter
confirmado isso em Delhi, explicamos que era feriado, ele resmungou,
foi lá dentro, demorou, demorou, voltou e finalmente carimbou tudo.
A fila toda quase aplaudiu, de alívio.
AEROPORTO
DE COPENHAGEN
http://www.airport-technology.com/projects/copenhagenairport/copenhagenairport4.html
Nossa
volta era via Copenhagen e, lá chegando, nos instalamos nas cadeiras
de um bar, pois a espera seria de doze horas, sem que pudéssemos
sair do aeroporto. Passo por cima dessa etapa, pois na verdade não
há o que contar. Ficar doze horas sentadas num aeroporto é algo que
acaba em comer, ir ao toilete, ler, fazer palavras cruzadas em
dinamarquês ou inglês, comer de novo e dormir nos bancos.
Desembarcamos
no Brasil fazendo graça com os chapéus tailandeses na cabeça e
finalmente desabamos no sofá de casa. Primeiro, em silêncio,
bebendo café brasileiro como se fosse champagne francês e, depois,
sentindo o prazer, o indescritível prazer de voltar ao teto
conhecido, aos rostos conhecidos, aos cheiros conhecidos. Sentindo o
deleite de retornar, agora diferentes por dentro, por tudo o que
havíamos visto e vivido, às pessoas e aos lugares que amamos e aos
quais tantas vezes nos esquecemos de perceber, apenas pela sua
regularidade.
http://litterofagia.blogspot.com.br/2011/07/home-sweet-home.html
Ao
espírito quase grego da minha mãe, eternamente agradeço por essa
experiência única, maravilhosa, intensa, especial. Se pudesse
voltar no tempo, penso que a única coisa diferente que faria seria
focar mais a minha vida em viajar mais com ela, minha Sacerdotisa
maior, pelo mundo afora. Saudades, saudades de tudo, saudades demais.
E, ainda assim, doce, muito doce, ter tudo isso para recordar.
Ivana,
ResponderExcluirnão identifiquei quando vc escreveu esta sua experiência, mas vi que aconteceu 23 anos atrás.... ri com você, fiquei tensa pensando na sua preocupação, imaginei que poderia ter sido comigo.... se eu tivesse tido a coragem de virar as costas às convenções e ido viajar ao invés de casar..... ;-)
Ótimo texto... maravilhosas experiências....
Um beijo e se precisar de companhia para outras viagens assim de improviso, me chama que eu vou!
Regina
Oi Regina,
ExcluirFico mto feliz em saber que o texto te fez viajar um pouco tb.
E, sugestão: pense em "E se eu fizer?", em vez de "E se eu tivesse feito?"... Rende mais!...rsrs.
Bjs e obrigada pelo comentário!